Entrevista com Gaby Amarantos
Publicado em 3 de setembro de 2021
O ciclo criativo de Gaby Amarantos manteve-se resistente aos charmes da indústria. Depois de quase uma década da estreia de “Treme”, disco que lhe abriu portas e hoje é sinônimo de pioneirismo, a cantora e apresentadora paraense expande a própria bagagem em um projeto que exalta o feminino e a sabedoria, além de agregar novos sons.
As 13 canções escolhidas têm produção do amigo Jaloo, grande companheiro de jornadas criativas a bordo de um barco no Rio Tapajós, na Amazônia, e carregam um desejo de revelar facetas de um Brasil profundo, com criadores de diferentes áreas e gerações que dividem um só sonho: pensar o futuro e o pop de formas plurilaterais.
Além de Alcione, Dona Onete e Elza Soares, que participam da faixa de abertura (“Última Lágrima”), cantam ainda Ney Matogrosso e Urias (que dividem os vocais em “Vênus em Escorpião”) e Liniker, que agora em carreira solo abre os trabalhos do projeto oficialmente com o single “Amor Para Recordar”.
Abaixo, você lê uma entrevista com a artista em que ela reflete sobre a música das periferias, efemeridade e a natureza enquanto fonte de arte.
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Papelpop: A faixa de abertura do disco traz a participação de Alcione, Elza Soares e Dona Onete, três das maiores artistas brasileiras, todas com trajetórias igualmente relevantes. Por que reverenciá-las agora?
Gaby Amarantos: Nós estamos em um momento em que precisamos lembrar de reverenciar as mulheres mais velhas. Elas, Alcione, Elza e Dona Onete, são pra mim a santíssima trindade da música brasileira. Estamos num país que vive tanta coisa nos últimos tempos, precisamos devolver arte e beleza, encantamento. Precisamos lembrar o quanto esse país é incrível, cheio de gente nova e gente velha criativa. Eu abro com três cantoras de 70, 80 e 90 anos e acho que isso simboliza bem o quanto o todo é muito sobre mulheres. Mas se você percebe atentamente, os homens que convidei pra cantar também tem o lado feminino aflorado, tudo em sintonia com a nossa concepção.
Isso me lembra o quanto ‘Rio’, única composição que você assina sozinha nesse LP, desvenda essa posição da água como elemento feminino. O que a natureza pode nos ensinar sobre isso?
A água, como você mesmo disse, é o elemento do ‘Purakê’. Quando a gente fez uma espécie de árvore genealógica, de cronologia do disco, entendemos a importância disso porque a Amazônia, em si, é água. A gente tem um estereótipo de que ‘a floresta é o pulmão do mundo’, mas na verdade ela é o que umidifica o planeta. Ela é o rio flutuante invisível que nem sabemos que está lá, mas que exerce uma função vital de chuvas que abastecem. Quando se viaja de avião e você tem o privilégio de voar sobre a Amazônia, você olha pra baixo e vê várias veias, vê essa floresta de água que é a nossa rua, que é o feminino da Amazônia. O rio, sendo ainda mais clara, é o órgão genital feminino da floresta. Eu precisava muito falar sobre esse lado da floresta, que temos que valorizar. Aqui e na floresta o rio desperta um estado meditativo, que nos convida a respirar.
O clipe de “Amor Para Recordar”, com Liniker, homenageia as mulheres ribeirinhas. O que significa, do ponto de vista artístico, valorizar culturas locais como essa, invisibilizadas?
Esse vídeo me emociona muito porque quando a gente fala dessas populações, dessas minorias, a gente fala do povo negro, indígena, quilombola, e a gente esquece do povo ribeirinho. E a gente precisa colocá-los na pauta. Meus pais são ribeirinhos, eu vivi uma infância ribeirinha, meus avós eram, toda a minha árvore genealógica até onde eu sei. É uma galera que tá lá no meio da floresta amazônica vivendo e às vezes sem estrutura. Você tem que remar 5h pra chegar num hospital, 2h pra chegar numa escola. Isso quando tem um barco escolar… É uma vida linda, mas muito sofrida também. Quis trazer isso pras pessoas, convidá-los a aprender juntos.
“Purakê”, aliás, é um título bastante peculiar, que se conecta de forma uniforme com todas as referências que você traz. Líricas, visuais…
Sim. O purakê é um peixe elétrico pré-histórico que tem uma eletricidade natural de 500/850 V. É uma eletricidade da natureza, criada pelo altíssimo. Queríamos falar sobre um tipo de choque que está presente em todas as músicas, mas que não é frenético. São canções que como a força dessa corrente vão avançando pelas veias, pelos órgãos. O disco faz pensar, querer beber, bater a raba, sentir o caos, mas de uma forma muito gradativa. É uma eletricidade que provoca um mix de emoções e que traduz a essência desse peixe, dessa mulher-peixe amazônica que é árvore e uma afro-indígena que está no futuro. Por isso temos essa capa tão forte. Foi pensado com muito cuidado, principalmente porque procuro ouvintes que queriam arte pra ficar, que tenham paciência de ouvir, de assistir e se deixarem ser impactados. Essas são as pessoas que eu procuro. Tudo bem existir aí fora uma efemeridade, mas ainda precisamos dessa arte.
Você levou 9 anos pra apresentar um disco de inéditas. Se sentiu cobrada a ter um ciclo criativo mais curto?
Nossa, pra caralho. E ainda houve boatos de que eu estava na pior [risos]. Esse segundo disco vem pra mostrar que estou no momento certo, que esperei um momento oportuno. Jaloo e eu pensamos muito no que queríamos fazer. Pegamos um barco e fomos pra uma imersão no meio da floresta onde passamos um tempo compondo músicas, ficamos 3 dias em locais absolutamente incomunicáveis. Sempre pensando em fazer trabalhos pra tocar, impactar. Também acho que o álbum está muito em voga, as pessoas querem viver uma experiência profunda. E é justamente o que quisemos oferecer.
O amor, enquanto tema, perpassa todo o disco e se entrelaça à tecnologia. Ficou mais difícil falar de amor nos tempos modernos? As complexidades são outras?
Todo mundo quer amar. Esse papo furado aí de desapego e não sei o quê… no fundo tá todo mundo sofrendo, querendo encontrar alguém e com medo de admitir. Não acredito que o amor vai sair de moda, as relações, sim, mudaram e estamos vivendo um processo de encontro ao amor próprio, principalmente pras mulheres. A gente que é mulher entende que pra amar outra pessoa tem que estar bem consigo mesma, tem que curtir a nossa própria companhia, fazer uma viagem só, passar um tempo só e se amar ao ponto de poder amar outra pessoa. Eu gosto mesmo é de amar, de ir pra rua, como diz a música que lanço com Ney e Urias. ‘Eu vou pra rua sentindo o vazio’ [Gaby canta]. Não boto culpa no tempo, no carma, nem no signo de escorpião. Eu quero amar cima de qualquer coisa. E ‘Amor Para Recordar’ reflete o amor de outra forma, pensando que podemos ter perdido alguém ou que nos distanciamos desse alguém. É preciso pensar os vários amores e entender que eles nos ensinam. Quando você entende isso, isso vira uma chave. Já tive muito boy lixo, mas todos eles me deixaram algo, me fizeram uma Gaby melhor.
O disco não tem foco no technobrega, mas você faz questão de empregá-lo em uma parceria com Leona Vingativa e Viviane Batidão. Em um dos versos você canta “Abre a roda que o technobrega é foda”. Que protagonismo o gênero tem hoje no pop nacional? Sente que as pessoas o respeitam mais do que há dez anos, por exemplo?
As pessoas estão começando a entender mais e é muito bom ter gente como Pabllo Vittar gravando esse som ou trazendo referências disso, não só nesse disco [Batidão Tropical, 2021], mas nos outros também. O Rodrigo Gorky, produtor de Pabllo, saca muito desse movimento, trabalhou as canções e discos de Banda Uó no passado… Nesse mesmo rolê você vê o que acontece ainda com o bregafunk, em Recife, outro estilo que nasceu do technobrega, que é pai de todos esses estilos eletrônicos que estão em diálogo. Bem, no lugar que me cabe eu me sinto um pouco mãe disso tudo, fico orgulhosa e quero mais é que as pessoas conheçam, quanto mais tiverem acesso e conhecerem, grandes artistas vão ser despertados. Lembro sempre de Aretuza Lovi, que todas as vezes em que me encontra diz que sonha em gravar um disco inteiro só com músicas do gênero. Os Pet Shop Boys gravaram um technobrega tempos atrás, produzido por DJ Valdo Squash. Eu, por outro lado, não quis fazer um disco só com esse ritmo, eu precisava mostrar que a Gaby vai além, mas por outro lado ele marca presença ali numa faixa muito potente, que você cita. Assim como Caetano Veloso diz que ‘A bossa nova é foda’, eu precisava dizer a mesma coisa sobre o technobrega, o quanto ele é foda. Futuramente, espero que esse esforço me permita dizer o quanto isso veio do Pará, da periferia do Pará, e pode conquistar o mundo. O funk teve esse mesmo potencial e acredito que esse processo acontece em ondas sonoras, em um banzeiro. As pessoas vão ouvindo devagar e não temos pressa. Tudo acontece na hora certa.
E é um processo igualmente inspirador pros jovens criadores, você mesma acabou de citar essa geolocalização do gênero na periferia, onde a maioria esmagadora de quem faz e reverbera…
Exato. Quero que todos gravem, bebam na fonte, é super importante. Só quero que deem os créditos pro meu Pará [risos]. É pra espalhar, agora é do mundo, não é só nosso mais.
Lembro de você lançando o seu primeiro disco conquistando um espaço àquela altura pequeno na TV e nos rádios, e hoje você tem uma trajetória respeitável. Apresenta um programa, foi tema de novela, ocupa uma cadeira do The Voice… Qual é a sensação de ter aberto portas pra tanta gente?
É uma sensação de devolução. Também tive que pessoas que abriram portas pra mim. Lembro que uma vez estava numa situação muito ferrada de grana, grávida, precisando trabalhar e aí fui bater na porta de uma pessoa que sempre me pediu pra não dizer o nome, mas que tinha uma loja de informática. Eu precisava de um computador pra produzir as minhas próprias músicas e ele disse ‘Vou te dar um computador, mas você vai devolver e fazer o bem por outra pessoa. Vai passar isso adiante’. Então, hoje me sinto fazendo isso, mas também estando presente no movimento e usufruindo. Eu também sou muito beneficiada por ser essa voz, essa matriarca, embora seja alguém jovem, igualmente. Alguém que faz parcerias com pessoas como Urias, Viviane Batidão, ao mesmo tempo em que também converso com a geração de Ney Matogrosso, Elza Soares… Sinto que colho frutos que nós plantamos juntos. Só não posso dizer também que fiz sozinha, tenho uma equipe maravilhosa.
Sente que o público ainda vê os sons da Amazônia, os sons do Norte, como algo exótico?
‘Purakê’, de certa forma, quebra um pouco disso. Sei que todo mundo espera um álbum com technobrega do início ao fim, ou que só tenha tambor e maracá. Mas todos que ouviram até agora se surpreenderam com a modernidade do som, um som que tá em 2050. Essa é uma proposta que o ‘Treme’ também teve quando surgiu. Esse novo projeto apresenta estilos musicais que nem eu sei nomear, nem Jaloo [produtor] sabe dar a devida nomenclatura. Tem tanta coisa nova que as pessoas vão se perguntar o que inventamos, que batidas são aquelas. Acredito muito nessa Amazônia que está à frente, que tem vanguardistas, que pensamos na Amazônia e nessa sonoridade contida ali. É um álbum visual que se inspira muito no ‘Dirty Computer’, da Janelle Monáe, no ‘Black Is King’, da Beyoncé, porque a gente produziu um conteúdo com animações e intervenções feitas por artistas da periferia paraense. Os figurinos também foram feitos por artistas e criadores de lá. O álbum não é pra ser ouvido, mas sim visto. Sugiro que quem assista todos os conteúdos que vamos lançar pare e use uma luz baixa, pegue seu vinhos e drinks. Quem sabe uma cadeira pra sentar? E depois que tudo começar, que as coisas caminharem, se levante e dance.
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“Puraké”, o novo disco de Gaby Amarantos, já está disponível em todas as plataformas de streaming.